quarta-feira, 5 de julho de 2017

Mais que especial



Oi.

Eu quero contar uma história pra vocês..

Era uma vez, menina que era professora a quase dez anos. Já tinha passado por algumas escolas, boas e ruins, e ao se formar professora e pedagoga passou a pensar a educação perseguindo a coerência profissional e ética.. Ela estudava bastante, mas não tinha nenhuma necessidade de ficar dizendo isso o tempo todo. Tinha mais interesse em saber das coisas que em afirmar seus estudos. Acreditava muito mais na sensibilidade que nos títulos.
Quando foi conhecer seu novo ambiente de trabalho, foi otimista. Até as primeiras horas..

Logo no primeiro dia de trabalho ela soube que naquele espaço era natural negar direito aos alunos, aulas de educação física e momentos de recreação eram objetos de chantagem contra as crianças. Doces e estrelas funcionavam como recompensas pela obediência e desempenho (durante uma aula UM pirulito foi dividido entre os alunos 'que merecem'). Cotidianamente as crianças eram adjetivadas pejorativamente e sem a menor descrição eram feitas as observações pessoais e familiares em público. As crianças eram ameaçadas aos gritos para sentirem medo de diminuição de notas e queixas aos pais,  e também aos gritos se exigia silêncio delas, cabeças baixas e repressão a qualquer tipo de brincadeira. Um dia teve uma funcionária que ameaçou agredir fisicamente uma aluna com deficiência auditiva, na frente da diretora adjunta! O que aconteceu? Nada, só um sorriso amarelo por parte da gestora. Algumas vezes as ameaças se confirmavam e aí acontecia de algumas crianças ficarem de pé, na frente da turma como forma de castigo ou fora da sala de aula sozinhas em corredores enquanto a turma assistia um filme, por exemplo. Os tipos de castigos variavam.. os piores eram os castigos de apelo psicológico (solidão, separar a criança do grupo, deixar a criança chorando).
Com a chegada das datas comemorativas, músicas religiosas e discursos com citações bíblicas nos momentos iniciais de alguns dias letivos. Mas ainda assim havia uma certa contradição com a ideologia cristã.. porque além de um discurso meritocrata fortíssimo, também tinha apoio aos maus tratos "- mãe que ama dá palmada".
Além da meritocracia, competitividade, ideologias binária de gênero e hierarquias, nessa escola também se ensinava conteúdos.. muitos! Exercícios exaustivos, alguns passados no quadro já com as respostas (era só copiar!), de um jeito bem mecânico e engessado. Nada de empatia e autocrítica por parte dos funcionários. E nenhuma conexão com a realidade dos alunos, que mesmo sendo tratados desa forma, iam pra escola em dias chuvosos e com tiroteio. 
Todos os dias havia um horror. Uma surpresa lamentável, uma situação de desconforto. Todos os dias!

A menina que chegou na escola otimista bem rapidamente entendeu que aquela seria uma experiência marcante, um teste de sobrevivência de suas convicções e práticas. Ela só não tinha noção da intensidade que ela poderia ser detestada e amada naquele lugar.

A novata conheceu algumas pessoas.. e dentre elas tinham algumas pessoas 'muito especiais'
Essas pessoas especiais ensinaram muuuuuitas coisas a novata da escola, coisas sobre amor,  força, resistência, paciência, empatia e solidariedade.
Uma dessas pessoas é essa menina aí da foto. Ela é linda, esperta, engraçada e muito, muito, muito inteligente. E ela tem síndrome de Down.
Quando se conheceram, a menina especial ficava separada do seu grupo escolar, no fundo da sala de aula. Ela não conseguia se comunicar muito bem, e por isso ela tinha um comportamento classificado como 'agressivo'. Na verdade ela não era vista, nem ouvida.. não havia nenhum esforço de entender as necessidades e angustias dela.. Com o tempo isso melhorou muito. 
Dentre algumas dificuldade, a novata percebeu que a menina especial era uma criança com total aversão a atividades concorridas, ou seja, tudo que as outras crianças amam fazer ela abria mão quando percebia que todos os colegas queriam fazer. E por isso ela não brincava no parquinho da escola, perguntava insistentemente pelas aulas e pela professora de educação física, mas nunca fazia as aulas, dentre outas situações cheias de especificidades. 

No dia que essa foto foi clicada aconteceu uma coisa muito importante, uma conquista! Essa menina linda e muito especial NUNCA se quer tinha entrado no espaço da parquinho da escola, e nesse dia ela não só entrou como conseguiu ir no escorrega sozinha (ela também tem medo de altura)! As duas meninas ficaram MUUUUUUITO felizes com essa vitória. Só elas duas.. A alegria dela foi tanta que até escapuliu um xixi na calça, tamanha excitação de conseguir subir e deslizar no escorrega. 
Não tinha quase ninguém interessado sinceramente em compartilhar dessa alegria com elas. Não teve o reconhecimento de ninguém. Mas não faz mal, elas deram risada e se curtiram muito juntinhas.
Na semana seguinte, aconteceu uma outra grande alegria, no dia do show de talentos da escola ela quis e conseguiu colocar um vestido de princesa e um chapéu verde. Ela ficou toda enfeitada passeando pela escola e fazendo graçinhas.. foi muito lindo! Muito emocionante!

Com o tempo a novata foi percebendo que as vitórias era realmente importantes só pra elas, e as vezes comemoradas por alguns coleguinhas de turma. As outras pessoas especiais também caminhavam em seus avanços, e as alegrias eram igualmente comemoradas em par. A rotina pesada da escola, na verdade era pesada só pra novata.. havia uma naturalização coletiva da maldade e do egoísmo naquele lugar. E com o tempo a novata percebeu o quanto pode incomodar as pequenas alegrias, e questões individuais.
A forma como a novata lidava com as crianças, os carinhos, as trocas, a estima, a paciência, tudo.. até as anotações em dias de reunião incomodavam o restante das pessoas.
Com o tempo houveram as estratégias de invisibilização e silenciamento.

Hoje eu passei o dia acompanhando a novata. Foi um dia MUITO difícil pra ela, muito! E aí ela me mostrou essa foto, porque quando ela olha essa foto as dificuldades que emergiram hoje parecem compensadas. A muito tempo não se sentia uma angustia tão grande, a muito tempo não me sentia tão ameaçada, injustiçada, entristecida e desesperada. É essa a palavra, desespero. E injustiça também.
Sabe aquele dia difícil que faz a gente ficar com o choro engasgado e depois a gente sente a dores físicas?! Então..
A gente escreve pra não ser engolida.

Parece a descrição da escola de um tempo antiquíssimo, mas é atual. Parece longe, mas infelizmente é perto. Essa não é uma escola, são muitas. Muitas são escolas de horrores! Mas só uma teve a sorte de servir de cenário pra uma amizade tão sincera entre duas meninas.
A novata sempre soube que conhecimento é poder, mas nunca tinha experimentado como isso era tão ameaçador as pessoas. É claro que ela incomodou, incomodou e permaneceu resistindo.
Fazer as coisas certas dói, dói muito e faz sofrer. 
Mas o amor, ah o amor.. as pessoas mais que especiais compensam! 

Boa noite 

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